quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Faça a sua parte: Adote um trema


Era uma vez, num país não tão distante, um sujeito muito
trabalhador. Dedicava-se como ninguém a cumprir sua função, e
olha que nem sempre ele era reconhecido por isso.

Seu nome era Trema. Ele vinha de uma grande família de sinais
gráficos famosa na Alemanha, na França, na Suécia e em Portugal.
De Portugal ele havia emigrado ainda jovem para o Brasil, junto
com outros colegas, como a Crase e o Acento Agudo.

Alguns destes colegas tinham apelidos: o Acento Circunflexo, por exemplo, todos
chamavam de "Chapeuzinho". Mas o Trema sempre se considerou uma
pessoa importante, que não podia correr o risco de se vulgarizar,
e por isso nunca adotou um apelido.

A tarefa do Trema? Era das mais importantes. Ele era responsável
por ensinar aos falantes da língua, especialmente aos leitores de
um texto escrito, a pronúncia correta das palavras. Nesta
profissão, o Trema acabou encontrando e fazendo ótimos amigos.
Durante anos, foi sempre visto de mãos dadas com uma turma de
ditongos.

Acontece que havia gente que olhava o Trema com cara feia. No
começo, ele não se importava. Nunca fizera mal a quem quer que
fosse! Nunca sequer se divertira assustando vestibulandos -
alguns de seus colegas, como o Acento Grave, gostavam de fazer
isso, mas não ele!

Porém, com o tempo e com as repetidas
injustiças de que era vítima, aquilo passou a incomodá-lo.

Começou aos poucos, na surdina. Veio na escalada do crime que
acometia as grandes cidades do país. Jornais e periódicos
passaram a seqüestrar o Trema que havia na palavra seqüestro.
"Sequestro". A princípio, ninguém se deu conta. Quando
perceberam, ao invés de chamarem a polícia e resgatarem o pobre
seqüestrado, usaram o fato como arma: esse Trema é tão inútil que
ninguém sente falta dele!

E então veio o movimento. Passeatas. Abaixo-assinados de
estudantes de Língua Portuguesa que tinham senhoras gordas e
carrancudas como professoras. Pressionaram a Academia. Esta
enviou um memorando ao Governo. O Governo se fechou numa reunião
séria e debateu, debateu. Criaram um Grupo de Trabalho. Anos e
anos de discussão, atividade de lobistas, jogo de interesses. E o
Ministério dos Sinais Gráficos veio com a sentença:

- O Trema, meliante de notória atividade subversiva, fica
condenado ao exílio perpétuo, devendo deixar este país em
primeiro de janeiro. Caso se recuse a cumprir a pena, as
Autoridades Literárias têm o aval para utilizar a força buscando
o extermínio definitivo do Trema. Outros sinais gráficos que
tenham tido contato com o condenado, como o Acento Agudo e o
Acento Circunflexo, passam a serem considerados subversivos e
fica proibida sua presença em assembléias, vôos, sobrevôos e
afins.

Imaginem o desespero do coitado do Trema! Ele, que nunca fizera
mal a ninguém! Expulso de um país que ele amava tanto! Proibido
de fazer o trabalho que ele tanto amava!

O Trema passou meses deprimido, sem saber o que fazer. Até que,
num canal da televisão, viu por acaso a palestra de um
especialista em mercado (ou marketing, como dizem em português).
Tratava-se de um consultor aparentemente muito famoso, que fez
uma longa explanação sobre nichos de mercado, planejamento
estratégico, foco no cliente, tempestades cerebrais e, por fim,
sobre como se adaptar ao mercado para manter-se nele.

Vocês acreditam que, neste momento, deu-se um estalo na cabeça do
Trema, uma lâmpada se acendeu e ele teve uma idéia? Decidiu sair
da letargia. Estava salvo! Mas era preciso diversificar. Pensou
em distribuir folhetos explicando sua tragédia pessoal e vendendo
sua idéia. Em esquinas. Em ônibus. De porta em porta. Foi assim
que eu recebi um destes folhetos. E aderi à campanha.

Tudo o que o Trema quer é um emprego honesto, ajudar na evolução
desta Língua Portuguesa que ele tanto ama, vocês sabem? Longe
dele querer ser contra a evolução: ele só quer poder contribuir.
Por isso, o Trema está se oferecendo para, a partir do próximo
ano, assumir uma vaga de Dois Pontos. E ele conta conosco. Vejam,
ele se dispõe a sair da horizontal e passar os dias na vertical.
Ele pede a nossa ajuda. Em primeiro de janeiro, adotem um Trema:
não deixem de colocar Dois Pontos em seus escritos.


Artigo [brilhante] de Eduardo Trindade.
http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2008/11/12/faca_sua_parte_adote_um_trema_-586366235.asp

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