domingo, 4 de novembro de 2007

O Tributo

O recado na secretária eletrônica não era exatamente claro. Uma voz feminina só dizia que era para comparecer “com uma certa urgência” no Departamento Federal de Finanças, no centro da cidade, para tratar de um assunto “do meu interesse”. Retornei a ligação:
– Boa tarde, eu sou Fulano de Tal e recebi uma ligação de vocês. Se for possível, gostaria de saber do que se trata...
– Olha, Fulano. – Respondeu a atendente. – Só chegou um comunicado aqui e eu estou repassando para o senhor. Diz que é uma irregularidade.
– Irregularidade? – Perguntei, surpreso. – Que tipo de irregularidade?
– Eu não sei de nada, não. Você tem que ir lá para ver. Você recebe um convite. – Disse ela, impaciente.
Estava pensando no motivo do chamado tão improvável. Ainda se eu fosse culpado de algo, vá lá, é conseqüência de um ato ilegal. Porém, até onde soubesse, sempre fui uma pessoa muito organizada e responsável, não contraindo dívidas, pagando todos os impostos e encargos em dia, trabalhando, enfim. Com certeza seria um engano incômodo e tudo se resolveria naturalmente.
Na manhã seguinte, eu teria que ir de qualquer jeito para o centro, pois era o dia de renovar o documento de Identificação Geral e, como o local não era muito distante dali, eu iria para o tal DFF em seguida.



Passei boa parte da linda manhã ensolarada na fila do Setor de Identificação da Secretaria de Registros Pessoais. Havia chegado lá às seis horas e a fila já estava formada com dezenas de pessoas. Eles começaram a atender às nove e meia, uma hora e meia depois do previsto e, às onze e quarenta e cinco eu era o terceiro da fila, mas o ritmo de atendimento havia diminuído por causa do horário de almoço. Levava comigo uma pasta com os documentos necessários e, como havia apenas tomado uma xícara de café ao sair de casa, estava com fome e o fardo se tornava mais pesado a cada minuto.
– O próximo! – Era exatamente uma hora da tarde quando chegou, finalmente, a minha vez de ser atendido. Sentei na cadeira em frente a uma mesa, onde depositei a pasta com os meus documentos, acrescentando mais papéis à mesa já abarrotada. O atendente, sem pressa, conversava com uma senhora de aparência cansada. – Quinta é feriado, eu vou emendar, não quero nem saber.
– Está certo, você está no seu direito. – Assentiu a senhora.
– Ê, vagabundagem, hein? – O funcionário da mesa ao lado gracejou.
– Quer dizer que o bonitão aí vai trabalhar na sexta? – Duvidou o homem franzino à minha frente.
– Quero só ver... – Ironizou a senhora, em pé, ao meu lado.
– É evidente que eu não vou vir trabalhar na sexta-feira! – Explicou. – Mas eu vou fazer uma coisa útil, não vou ficar coçando como vocês.
– Coisa útil? – Surpreendeu-se a mulher. – Você?
– Eu sou finalista do torneio estadual de canastra, sexta é a grande partida!
– Canastra, é? – Garagalharam os dois. – Então, boa sorte!
– Segura a onda aí pra mim, que eu vou... – Falou o futuro campeão, dispensando a pessoa que atendia e completando a mensagem com um gesto da mão em direção à boca.
– Vai fundo, vai. – Tranqüilizou-o o que estava à minha frente. Em seguida, voltou-se para a mesa, deu uns goles num copo d’água e começou a conferir os meus papéis.
– Boa tarde. – Cumprimentei, irritado.
– Boa tarde. – Respondeu o atendente, sem dirigir-me o olhar, voltando-se para a tela do computador ao lado. – Senhor Fulano de Tal... – Disse, enquanto digitava algo nos teclados, sem tirar o olhar do monitor. – Parece que temos um probleminha aqui...
– Era só o que faltava! – Exclamei, me lembrando do recado do dia anterior. – Que espécie de probleminha?
– Deu aqui que é uma irregularidade fiscal. – Disse ele, me encarando pela primeira vez, profundamente.
– Mas como assim? Que tipo de irregularidade? – Questionei, perplexo.
– Aqui não diz nada. Você tem que ir lá no Departamento Federal de Finanças conferir. – Ele me devolveu a pasta de documentos e continuou. – Enquanto o senhor não resolver isso, eu não posso fazer nada, o sistema fica bloqueado.
– Mas se eu não renovar hoje a minha identificação, aí sim vou ficar irregular! – Argumentei, sem saber o que pensar.
– O senhor já está irregular. – Observou o perspicaz atendente. – O próximo!




(T.F.Martins)

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